A propósito da seguinte frase de Dulce Maria Cardoso: “O sonho de qualquer escritor é ser lido. Se disser o contrário tem um problema grave. Escreve e publica para comunicar. Tenho para mim que um livro morre nas mãos de um escritor quando o acaba e é nas mãos dos leitores que ressuscita e nesse processo há sempre um novo livro.”
O escritor ajudou-o a nascer. Cabeça-abaixo, deu-lhe a palmada que o tirou da agonia infinita antes do primeiro fôlego.
Este não foi um parto sem dor. O pequeno monstro impôs-se, secando a caneta-mãe, deixando-a sem gota. O escritor beijou-a uma última vez, fechou-lhe os olhos em despedida e olhou, pai assustado, para a sua progénia, para a vida que surgia agora em troca.
Pelo amor do sangue, alimentou-o para depois o segurar num bolço de ombros, arroto de letras. Orgulhoso porque já esquecido, sorriu com os seus primeiros passos, a primeira queda esfolou-lhe a capa.
Foi à escola, conheceu moças e desflorou-se, ou desfolhou-se, cresceu…
Mas o segredo esteve sempre lá. Escondido. Paciente. À espera do momento oportuno. O segredo do livro-zombie!
Sabem como os zombies, teimosos que são, se levantam – uma e outra vez, mais perna ou menos braço – por muito que lhes rebentem os cornos?
Assim é o menino, agora homem, livro-zombie.
Solto, ataca. Vive e ganha ímpeto quando é lido. Aprisiona o leitor e fá-lo sofrer, dentes cravados no coração até morrer na última página.
Não será maldade, talvez natureza, como o escorpião. É incompreendido por vezes e, sozinho ou narciso, tem ânsia de comunicar, de ser lido por dentro. De contar verdades ou bazófias, precisa que o (re)conheçam.
O leitor defende-se e luta. Marca páginas, dobra cantos, desfia o cordel marcador. Nada detém o livro-zombie, habituado que está a estes espólios da guerra. Com a sua canção maldita, sibila apaixonante, devora-lhe desta vez o cérebro, é preciso recuperar do último tiro nos cornos.
É uma troca justa, o leitor ganha um novo universo ou um novo sentimento, um novo pensamento ou uma nova fantasia. Pois não será o sonho cérebro?
Falta-lhe sempre corpo, sempre bocados por preencher. E continua o ciclo da simbiose. O ciclo de ler e ser lido. Cativando maldosamente o leitor seguinte, aquele que vem após o anterior. Ganhando ânimo, mistério, amor ou terror. Novo prazer, mesmo final.
E morre. E nasce. E remorre. E renasce!
Porque escrevo?
Escrevo para secar canetas. Morte-Parto.
Gonçalo Fortes