Hoje apetece-me escrever um drama de faca e alguidar. Daqueles em que morre toda a gente no fim. Se não gostam que vos estraguem a surpresa, escusam de ler mais. Há dias em que acordo bem disposto, como se tivesse sido enrabado por um Ursinho Carinhoso, mas hoje não é o caso. Ficam já avisados que vou matar toda a gente!
Podemos começar com algo original. Ora deixa cá ver… Todas as aventuras começam com uma viagem… Podemos ter a viagem inaugural de um barco, um gigantesco barco que irá pela primeira vez fazer a travessia de Southampton até Nova Iorque. Parece bem? Continuemos… Um navio imenso, cheio de pessoas e de coisas. Mas isto não é uma história de amor, não se esqueçam. Aqui, as coisas são canhões e minas submarinas e as pessoas são marujos, grumetes e capitães, rijos como o aço, maus como as cobras e com âncoras tatuadas nos braços. E uma ou outra sereia esborratada… Como em qualquer barco que se prezasse no antigamente, cavalheiro, deixa passar uma estátua de mulher à frente. Mas como isto não é uma história de amor, este navio é um couraçado. Um Bismarck imponente, que tributa a Idade do Ferro com 3000 anos de atraso. E na proa apresenta um disforme amontoado de vigas rodeadas por arames farpados. Uma placa inscrita Iron Maiden dá os ares do feminil.
Confirmadas as tempestades, levantou âncora e zarpou. Mas isto é um melodrama. E por isso não houve ninguém a levantar as mãos a Deus. A única manifestação de despedida foi um dos lobos do mar a aventar uma beata de cigarro que caiu ainda no cais. A escarreta que mandou a seguir já se dissolveu em água salgada. Era das verdes, demorou um bocado… À falta de nevoeiro, o carvão esfumado que soltava pela chaminé indicava, num zoom cinematográfico, que as Moiras já lhe fiavam o mistério…
É comum existir um clandestino nestas aventuras. E assim se materializa na escrita: um rapaz franzino, um zé-cuecas que começou por procurar o Sonho Americano no porão, por entre os ratos. Da vida deste rapaz pouco mais há a dizer além de que foi levado pela mãe a uma casa de meninas para perder a virgindade e saiu de lá a achar que tinha namorada. Enfezado, foi incapaz de se defender quando descoberto pelos futuros companheiros de aventuras vindouras. Foi salvo da prancha – que não era de surf, porque isto não é uma viagem de férias – pelo Capitão, que lhe prometeu uma esfregona e um balde de alcatrão para trabalho e um retorno às conversas de cabeceira roedoras para quarto. Já mais perto do sonho, perguntava aos outros, mostrando-lhes a foto da putativa namorada: Não é sexy? Faz pilates! Ao que estes respondiam, entre os dentes de bocas podres: Também faz broches. Hua hua hua hua hua, riam, com roncos à mistura.
Uma tarde, durante a vichyssoise de bordo – um prato de farelo de trigo diluído em rum e adoçado com banha de porco – o vigia gritou do cimo do mastro. Este mastro serve apenas para dar mais um apontamentozinho fálico à história, porque o barco não é à vela. Icebeeeergue! Ei-lo, já se esperava, o icebergue no horizonte. O horizonte é sempre longe, é aquela linha horizontal lá ao fundo, à qual nunca conseguimos chegar. Mas o fio das Moiras estava já enlaçado com os nós da velocidade e a colisão era encontro marcado.
Como isto não é uma história de amor, seria o momento perfeito para matar toda a gente. Mas não, ainda não. Aqui ninguém salta borda fora. Aumenta-se o vapor, seduz-se a Dama de Ferro, e enchem-se os copos com whisky escocês. Não era on the rocks, agora já é. O snooker dos icebergues há-de projectá-lo para uma qualquer história de amor, onde lhe dêem melhor uso.
O franzino, o zé-da-véstia, agora já não clandestino, esteve prestes a saltar. Mas foi agarrado mesmo no último instante, pé-seco, pé-molhado. Como recompensa pela cobardia, ganhou uns dias ao sol, amarrado ao mastro, se o fiz crescer lá atrás, mais vale que lhe dê uso. E foi num desses dias que a hélice parou de girar. O icebergue afinal não deu só cubos, que são a três dimensões. Deu também uma dimensão, uma linha no casco. Um rasgão no depósito de combustível. O barco é grande, ninguém tem força para o empurrar e a deriva começa. E é agora que vai morrer toda a gente de fome, sede e violência, pensam vocês? Não! Improvisa-se a gasolina… Foi ideia do enfezado, que comprou assim o cortar das amarras: Tragam-me a vichyssoise, disse. E disse ainda Tu! Vai lá abaixo e traz um barril de rum. A pasta alcoólica misturada com o óleo de peixe do convés ficou com a consistência perfeita para arder lentamente. E os motores de combustão também gostam de uma sopa gourmet de vez em quando, para substituir o petróleo.
Ia já o barco Titânico (“t” maiúsculo porquê?) a todo o gás, quando se imobiliza pela terceira vez, já começa a perder a graça. Fora abraçado por três tentáculos gigantes, prenúncio que mais cinco viriam a caminho. Contas feitas ao número e ao tamanho, não pode ser lula, polvo, choco ou alforreca. É o Kraken! Mas o Kraken da Grécia, não das Caraíbas, que o Perseu já lhe arrancava a Andrómeda dos dentes ainda o Jack Sparrow andava a direito. O barco estalou pelo rasgão e a Dama foi ao fundo. Erguendo as metades no ar, foram os próprios marinheiros agora farelo para o gigante marinho. Sim, já se está a ver, é desta que os mato… O ferro é pesado e macho, foi todo atrás da Dama. Mas nestas coisas dos naufrágios há sempre algo que fica à tona. Neste caso o mastro, que o imaginário é levezinho e flutua. E, para espanto do final desta história, agarrados a ele estão dois sobreviventes. O leviatã da boca-bico também já foi ao fundo, mas não por ter afundado.
Com ânsia de viver, o capitão e o franzino, o zé-quitólis, formam uma jangada com os destroços. Mas além do mastro, que não há-de durar muito, são os cadáveres o que mais flutua por ali. E assim se forma a embarcação-fantasma, o Holandês Voador, versão reduzida. A jangada de corpos, no regresso a casa…
Mas já se sabe, o Holandês está proibido de atracar e os vivos têm fome. À falta de melhor, há o piano do timoneiro para jantar. E amanhã para o almoço, um bracinho do engenheiro de máquinas, reconhecido pela sereia tatuada. Junte-se-lhe o sal da água, o decompor dos corpos e uns peixes de lábios ou dentes que vieram debicar, e a jangada ficou só osso, nem pele.
Já cada um a boiar para seu lado, o franzino, o zé-ninguém, diz ao capitão:
Toma, és mais forte que eu, vais salvar-te. Guarda isto e procura-a. Diz-lhe que a amo para sempre. Anda, vai!
Franzino, zé-das-osgas, eu não sei bem como te dizer isto… Mas… Esta mulher não é tua namorada… Esta mulher é… Pronto, esta mulher é uma puta!
Lembram-se da faca e alguidar do início? Surgem agora. Num acesso de raiva passional, e já com a faca na mão, o zé-coiso degolou o capitão, ganhando mais uns dias de flutuador e alimento. O alguidar, esse, passou lá ao fundo, bóia de salvação que nunca foi vista. E o zé deixou de sonhar com a América…
Gonçalo Fortes
8 de Novembro, 2011 at 00:42
Tu precisas de ajuda médica…
…e ainda bem. 😉
beijo
8 de Novembro, 2011 at 00:44
Já estou a ser acompanhado… 🙂
8 de Novembro, 2011 at 02:12
(…) It’s madness
The sun don’t shine
On the sea of madness
There ain’t no wind to fill your sails
Madness
When all you see can only bring you sadness
On towards the sea we go (…)
8 de Novembro, 2011 at 03:51
Boa escolha!
8 de Novembro, 2011 at 21:31
Sempre gostei de Iron Maiden e achei sublime a associação a Dama de Ferro. Já te tinha dito que a blogosfera tinha andado a perder talento com a tua ausência e, confirma-se! ( Massagem ao ego retribuida!)
9 de Novembro, 2011 at 00:29
E retiro o chapéu alto de dandy em agradecimento…
9 de Novembro, 2011 at 10:42
A dandy in a top hat…make a spin and I’m at your feet! 😛